Por Dandara Valadares*
Era domingo de sol, eu caminhava e observava, a rua estava cheia de famílias passeando com as crianças em meio aos vendedores ambulantes de brinquedos e lanches. À minha frente, caminhava uma família, pai, mãe, 3 meninas e um 1 menino – por volta de 5 anos de idade. O pai sugere tirar uma foto das crianças, eles se abraçam e fazem pose para a foto. O pai, que carregava a bolsa rosa de unicórnio de uma das meninas, pega a bolsa e entrega para o menino segurar: “segura a bolsinha rosa da sua irmã hahaha”. O menino, sem entender diz “está bem”, e o pai ri sem graça com a falta de compreensão do menino com a piada misógina, e pega a bolsa de volta “era brincadeira! rsrs”.
Essa cena me chamou muito a atenção pela reação do menino. Para ele a mochila era apenas uma mochila, de tecido rosa brilhante, com linhas coloridas e pompons furta cor. Para ele tanto faz a cor, contanto que fosse divertido. Para o pai, a bolsa é coisa de “menina”, um sinal de fraqueza, uma ameaça à masculinidade. Seguimos a concepção criada de que devemos nos vestir de acordo com o nosso gênero (que é na verdade socialmente construído e performado), por causa do machismo e racismo a que fomos submetidos desde criança, e que se impregnaram na nossa identidade.
É menine ou menine?
Nos últimos anos, o mercado da moda vem se deparando com uma quantidade relevante de marcas até então consideradas conservadoras que lançaram coleções com peças que podem ser usadas tanto por homens quanto por mulheres.
De acordo com a filósofa Silvia Feola, o movimento agênero pode de fato ajudar a diminuir o machismo que geralmente tem início na infância, e que a eliminação da tradicional divisão entre meninos e meninas a longo prazo pode contribuir na erradicação do bullying e homofobia nos ambientes escolares.
“A mensagem que passo no presente é sobre igualdade. Minha filha
usa roupas confortáveis para poder se movimentar e brincar de
qualquer coisa sem ser rotulada de menino/menina.”
Raquel Miranda, Comunicóloga, Mãe da Olívia e idealizadora do
podcast Amiga, Mãe; em depoimento ao Fashion Revolution.
Quando as crianças crescem com mais liberdade para se vestirem, em geral são educadas para estabelecerem uma relação de ética e respeito com os outros. A roupa é nosso primeiro contato com as outras pessoas, e é a partir dela que nos achamos no direito de julgar. Precisamos lembrar que a moda é para servir, além de funções práticas, como um instrumento de expressão e construção da nossa identidade. Precisamos rever a maneira como olhamos e entendemos as roupas, para que possamos respeitar uns aos outros enquanto indivíduos.
A comunicadora Babi Thomaz, mãe do Theodoro (9 anos) e Antônio (6), contou ao Fashion Revolution que “nunca teve essa de roupa de menino e de menina na nossa criação, mas com a socialização eles aprendem por amostragem que sim, na sociedade isso ainda é uma regra”. Apesar dos valores dos pais, Babi complementa que “cria-se uma confusão entre usar aquilo que você quer e ser aceito no grupo. Nós damos toda a liberdade, sem forçar para um lado ou outro. Conversamos sobre essas aflições e quase sempre o nó é desatado”.
O consumo e as crianças
Desde cedo, além de sermos colocados desde pequenos em pequenas caixas mentais que limitam nossas descobertas e expressão, somos submetidos à lógica capitalista de que ter coisas vale mais do que ser. A indução do consumo excessivo, de produtos que no fim são destinados à obsolescência programada e perceptiva durante a nossa fase de formação emocional e de valores, acaba por nos desconectar do que somos e do que realmente gostaríamos de ser.
Não deve ser por acaso que o dia das crianças (12/10) cai na mesma semana que o dia do consumo consciente (15/10). Estimular a conscientização dentro do período da infância é fundamental, bem como despertar nessas crianças um senso de responsabilidade coletiva, para que entendam quais são seus papéis enquanto seres humanos desde muito cedo. A pesquisadora da ECA-USP Anna Christina Madrid, em sua monografia “Criança, Sociedade, Moda E Consumo: Uma Breve História Social sobre Infância e Moda Infantil”, aponta que “empregar uma educação lúdica e responsável, debatendo sobre o papel da moda na atualidade e seus impactos no meio ambiente, além de relacionar tais assuntos com a questão da sustentabilidade são formas possíveis de estimular o desenvolvimento de um consumo consciente”.
Por isso, precisamos preparar as crianças a terem condições de ter uma reflexão crítica que as orientem, não subjugando-as, mas apoiando na construção do pensamento crítico, de forma criativa e ao mesmo tempo colocando um olhar cuidadoso sobre suas relações consigo mesmas e com o mundo ao seu redor. Precisamos olhar além da usabilidade e o caráter funcional das roupas, mas também para o seu potencial de construção de identidade e de valores.
Babi, que considera a sustentabilidade uma pauta muito importante para trabalhar com seus filhos, diz que “nem sempre é fácil porque a criança é hedonista e eles não conseguem alcançar o tamanho da complexidade que nós encontramos”, mas que “eles já estão cientes de que as gerações anteriores não deixaram muito planeta para eles. Sabem que a geração deles vai passar por muitos problemas ambientais porque ainda não estamos fazendo o suficiente. Fico triste de ter que dar a notícia de que talvez meus netos já não tenham um planeta habitável para crescer.”
Podemos por exemplo estimular que as crianças tenham o hábito de questionar de onde vem sua camiseta, como é feita a fibra do algodão, como ele foi plantado, qual a quantidade de água utilizada, quem foram as pessoas que participaram desse processo, sob quais condições. Ou para onde vão as roupas que descartamos, quanto tempo leva para tecidos como o poliéster se decompor, o que podemos fazer para prolongar o ciclo de vida de nossas roupas. Atividades de reparo, costura e upcycling podem ser ótimas oportunidades para abordar essas questões, e aguçar o pensamento crítico estimulando uma nova forma de pensar, que estimule o auto cuidado e o cuidado com o planeta.
“Roupa é ferramenta e a gente tem duas opções:
permitir que nossos filhos saibam usar mais essa
informação para transitarem como quiserem no mundo,
ou cortar as asas deles. Pra mim, a escolha é fácil.”
Carol Patrocínio, Mãe de Dois e Diretora Criativa;
em depoimento ao Fashion Revolution.
Expor as crianças à pautas que mais tarde possam influenciar em seus conceitos de ética, moral e mais profundamente na constituição de seu caráter. Moda é sobre pessoas e sobre o planeta, e esse entendimento pode e deve começar desde de muito cedo em nossas vidas. Como diria a Poeta Louise Gluck, a gente olha o mundo uma só vez, durante a infância. O resto é lembrança.